Por Pedro Santafé
Luis Fernando Verissimo talvez tenha sido o mais fiel intérprete do Brasil em franca urbanização e transformação na segunda metade do século XX, no contexto político da luta contra a ditadura e da redemocratização, enfim vitoriosa. Suas crônicas captaram a malícia e a desfaçatez de um país que ria de si mesmo — e de suas profundas mazelas sociais — enquanto aprendia a respirar os ares benfazejos da democracia. O humor, sempre temperado por ironia fina, servia-lhe de bisturi: instrumento para expor hipocrisias, revelar contradições e fazer blague dos pequenos e grandes absurdos de nossas relações sociais.
Verissimo pertenceu a uma geração brilhante que reuniu talentos como Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar e Henfil, mas soube ocupar um espaço singular e conquistou, merecidamente, um prestígio não rivalizado por seus pares. Era menos corrosivo que Millôr, menos satírico que Henfil, mas trazia consigo uma graça despretensiosa, capaz de combinar erudição e humor popular sem jamais soar esnobe. Sua prosa revelava a malícia de um país que ria de si mesmo, mesmo em meio às instabilidades e turbulências políticas da transição democrática.
Foi esse humor elegante, sempre atravessado pela ironia fina, que o tornou um dos autores mais lidos da imprensa e dos livros. E, quando sua obra chegou à televisão, Verissimo não fez concessões: inspirou produções em horário nobre na Vênus Platinada do Jardim Botânico, também conhecida como Rede Globo de Televisão, sem jamais perder o frescor de cronista de jornal.
Seu trabalho ganhou projeção nacional com a série A Comédia da Vida Privada, que estreou em abril de 1995, no horário nobre da TV Globo. Sob a direção de Guel Arraes e Jorge Furtado, o seriado — inspirado em crônicas e no livro homônimo do autor — levou para as telas de todo o país o tom espirituoso de Verissimo.
Sem elenco fixo, A Comédia da Vida Privada apostava em tramas curtas e ágeis: casamentos em crise, encontros inesperados entre ex-parceiros, vizinhos que revelavam segredos pelo lixo. Situações banais transformadas em pequenas crônicas televisivas, numa linguagem próxima à da telenovela, mas sempre com a marca do olhar mordaz do escritor gaúcho.
A força de sua escrita residia justamente nessa recusa às facilidades. Nunca se rendeu ao proselitismo, ao sentimentalismo barato ou ao didatismo enfadonho. Preferia o riso enviesado, aquele que desmonta certezas e ridiculariza pretensões. Ao contrário de tantos escritores que buscaram reconhecimento embalados pelo marketing cultural da grande mídia, ele chegou à tela sem perder a leveza e a malícia do cronista de jornal.
Hoje, quando a sátira se vê encurralada pela polarização, pelas patrulhas ideológicas das redes sociais e pelo avanço do fundamentalismo religioso, falar de Verissimo é mais do que prestar justa homenagem ao seu legado literário. É defender a ideia de um Brasil diverso, capaz de reconhecer suas mazelas sociais, suas imperfeições institucionais e suas contradições profundas — com humor, verve e ternura.
Falar de Verissimo, portanto, é defender um Brasil que ria de si mesmo sem medo de ser feliz. Um Brasil que talvez esteja em vias de desaparecer, soterrado pela polarização e pela literalidade agressiva de nosso tempo. O Brasil profano e debochado de Verissimo cultivava um humor cáustico e afetuoso, que ainda reverbera como um convite à resistência.

- Paulino Motter é jornalista e crítico literário amador.


