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O Perfume das Coisas Lindas e Findas

Pedro Santafé

“O homem é mortal por seus temores e imortal por seus desejos.”

— Simone de Beauvoir

Às vezes a vida se parece com uma matrioska: repete-se em diferentes escalas. Vai se retraindo e recolhendo até o desaparecimento. É muito curioso isso — essa sensação de que as coisas não acabam de vez, mas vão apenas se encolhendo, como se cada fase fosse uma miniatura da anterior: mais delicada, mais frágil, mais silenciosa.

Outro dia, já tarde da noite, escrevi a um amigo — homem entrado nos sessenta, embora às vezes me pareça mais próximo dos oitenta — uma mensagem impaciente:

“Odeio essa ideia inexorável e inevitável de envelhecer que você reforça todos os dias, insistentemente!”

Naquele dia, especialmente, ele esteve acrimonioso e lamuriento, como se desejasse que o mundo partilhasse de sua amargura. Um de seus desabafos, quase diários, ecoava ainda na minha cabeça: “Estou com medo de cair em depressão.”

Há algo de teatral nesses temores confessos — e de profundamente humano também. O medo de envelhecer é, no fundo, o medo de se tornar apenas uma lembrança, ou de desaparecer no completo e irremediável esquecimento. Incomoda ver a própria vida pelo retrovisor e perceber o fio do que ainda resta se deslocar para o domínio daquilo que já foi. Mas há uma diferença entre reconhecer o governo absoluto do “tempo rei”, na canção memorável de Gilberto Gil, e entregar-se passivamente ao seu jugo.

Curiosamente, nos últimos tempos tenho sido convidado, em geral como ghostwriter, a colaborar em depoimentos sobre pessoas que conheci ao longo da vida e que já estão mais adiantadas nos anos — ou que faleceram recentemente. Amigos, viúvos, ex-companheiros me procuram desejando deixar um registro, uma biografia, uma herança de palavras.

Essas encomendas, quase sempre afetuosas, funcionam como espelhos. Ao dar voz a vidas encerradas ou que se aproximam do desfecho, percebo que acabo escrevendo, inevitavelmente, sobre mim mesmo. Cada narrativa que reconstruo é também uma lembrança do que já vivi — e talvez do que me aguarda. É como se, a cada história de vida, eu percebesse uma nova camada se fechando dentro de mim: mais uma matrioska que se recolhe, até restar apenas a menor de todas, o núcleo irredutível da consciência de finitude humana.

Mas escrever também é um ato de resistência. Há certo consolo em registrar o que foi, como se o gesto de narrar mantivesse as coisas respirando por um instante a mais. Penso que essa talvez seja a grande ilusão que sustenta o ofício da escrita: a crença de que, se conseguimos dar forma à memória, colocá-la no papel, algo de nós persistirá quando a morte chegar. Que a última boneca, a mais pequena, guarda ainda outra dentro — sucessiva e infinitamente, invisível, inquebrável, feita de tempo suspenso.

Talvez envelhecer seja exatamente isso: aprender a conviver com o processo lento e imparável de miniaturização de nós mesmos, aceitar que o que se perde também se conserva — só que em escala reduzida, mais interior. E que a eternidade, afinal, não é um dom, mas um truque delicado da imaginação.

Há, contudo, um paradoxo que marca o envelhecer nesta era de relações virtuais. Nunca estivemos tão conectados — e, paradoxalmente, tão sós. As redes sociais nos prometem uma comunidade perene, uma presença contínua. Mas os amigos reais, esses, vão rareando. Uns se retraem e se enclausuram, outros se dispersam, alguns partem em silêncio. É como se o mundo, de tão saturado de vozes, se tornasse cada vez mais povoado — e, por isso mesmo, mais vazio e solitário.

Esse friends shortage, o empobrecimento das amizades com o avançar dos anos, é um sinal discreto de que entramos no terço final da vida. As lealdades antigas já não se renovam na mesma velocidade das perdas. O tempo estreita o círculo — não apenas pela morte ou pela distância, mas pela exaustão dos afetos que já não encontram chão comum. Ficamos, então, com poucas presenças sólidas, e com uma constelação de rostos conhecidos que orbitam a memória, sustentados por um “curtir” ou uma mensagem protocolar de aniversário.

Outro refúgio muito frequente neste estágio é a fé. Meu professor e mentor na pós-graduação, marxista com um penchant existencialista, reconciliou-se com o catolicismo da juventude, dedicando-se, inclusive, ao estudo do cristianismo primitivo. Tornou-se uma espécie de asceta. Passou até a apregoar, pelo exemplo, uma vida monástica e casta — como se, depois dos setenta, a castidade ainda pudesse ser considerada uma virtude. E, no entanto, havia ali algo de comovente: uma tentativa sincera de reencontrar sentido, de crer que o tempo pode ser convertido em transcendência.

Poderia enumerar ainda outras escolhas típicas da vida madura — a literatura, as artes, o artesanato, a dança — ocupações que buscam, de algum modo, reconciliar o corpo em declínio com a perenidade estética. Claro que falo a partir da perspectiva de quem envelhece com algum grau de segurança financeira. Bem diferente é a realidade da imensa maioria dos concidadãos, acompanhados pela pobreza por toda a vida, e que na velhice não encontram descanso nem no corpo nem na alma. Para estes, a eternidade é um luxo metafísico.

A tentação de um recomeço, porém, está sempre presente. Eu mesmo, recentemente, renovei o guarda-roupa e comprei ternos novos. Todas as manhãs, passo meticulosamente uma camisa social e aparo a barba. Uso cera modeladora para alinhar os cabelos, cada vez mais ralos. Até esfoliante e creme rejuvenescedor para a pele passei a usar. Mas todas essas vaidades não disfarçam a idade. Pratico uma espécie de autoetarismo, pretendendo ser o que já não sou. Como se a juventude pudesse ser performada — e o espelho, convencido a cooperar com essa encenação.

Talvez por isso a lembrança recorrente da terra natal ganhe força nesse estágio da vida. É curioso como, ao envelhecer, a memória afetiva da infância se intensifica. Lugares que deixamos há décadas voltam a nos visitar em sonho com uma nitidez quase sensorial: o cheiro do mato, o rumor do moinho, os sabores da culinária frugal do campo, a poeira das estradas de terra vermelha. Não é raro perceber que começamos a romantizar um passado bucólico — não porque ele tenha sido isento de dor, mas porque nele cabia uma forma de pertencimento que hoje se esgarçou.

A nostalgia, nesse sentido, é uma tentativa de cura: busca reatar laços e afetos que o tempo dispersou. E, paradoxalmente, também é uma forma de fuga — um modo de acreditar que o melhor de nós ficou preservado em algum ponto anterior do caminho. O retorno imaginário à terra natal é o contraponto ao friends shortage: se o presente é marcado por uma crescente solidão, o passado se repovoa de personagens familiares e benignos.

No fim, continuo acreditando que há uma espécie de dignidade em envelhecer com lucidez — ainda que isso signifique encarar de frente o próprio declínio e apagamento. Camus dizia que o sentido da vida é o mais urgente de todos os problemas filosóficos, e talvez a velhice seja o momento em que essa urgência se torna inadiável. O tempo, então, deixa de ser uma linha e se torna um espelho: o que vemos nele depende de como escolhemos olhar.

E se a vida é uma sucessão de matrioskas, talvez a última delas não seja o fim, mas a essência — o instante em que, despidos de tudo o que acumulamos, nos tornamos apenas consciência: leve e breve, mas ainda curiosamente viva. Como um eco que insiste em permanecer no ar depois que a voz já se calou e o coração parou de bater.

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