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Gilberto Gil se despede de Curitiba na Baixada

Percorro o Boulevard da Baixada antes de entrar no estádio. Várias tribos estão presentes. Não é a habitual multidão de atleticanos, com seus uniformes vermelho e preto berrantes anunciando a identidade clubística. Hoje é dia do show de Gilberto Gil, que se despede de Curitiba após uma carreira de mais de 60 anos e oitenta e três anos de vida. E como toda festa à maneira baiana-gilgilbertiana – a tribo é diversificada, como ele sempre foi.

Aqueles que o acompanharam durante toda a sua carreira, que começou no início dos anos 60, na Bahia, lá estão para se despedir do ídolo e companheiro de uma vida toda. Estes homens e mulheres se separaram de seus primeiros amores ouvindo Drão (o amor da gente é como um grão, uma semente de ilusão, tem que morrer para germinar) e agora cantam Tempo Rei (transformai as velhas formas do viver, ensinai-me ó pai, o que eu ainda não sei). Agora é hora da canção de despedida. Mas também seus filhos e netos lá estão, seduzidos pela ginga baiana. Gilberto Gil atrai gente de todas as gerações.

set list do show fez um apanhado de sua carreira, mostrando porque Gilberto Gil permaneceu nos palcos durante tanto tempo, ao contrário de outros ídolos dos anos 60, quando começou. Ancorado nas influências de Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi e João Gilberto, e seduzido pelo rock – sua primeira banda, Os Desafinados, tinha Elvis Presley como inspiração – e com uma imersão profunda no rock britânico dos anos 60, e no reggae de Bob Marley – e, last but not the least, a música africana(os antepassados de Gil vieram de Benin). Esta mixórdia, na mente de uma pessoa comum se transformaria em uma cacofonia musical. Gilberto Gil, na tradição fundada por Osvald de Andrade, junto com Caetano Veloso, Maria Bethania e Gal Costa, deglutiu a mixórdia. Ele fez de sua vida e de sua arte o que o Manifesto Antropofágico proclamava: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. 

Quando Gilberto Gil começou, anos 60, apesar de toda a efervescência cultural, política e de costumes, a mentalidade atrasada e reacionária predominava, inclusive nos meios artísticos. Em São Paulo alguns músicos promoveram uma passeata contra a guitarra elétrica, vista como um instrumento do demônio imperialista. Bom mesmo era o tambor, o violão, o berimbau. Os baianos heréticos, Gilberto Gil e Caetano Veloso à frente, desafiaram a mentalidade estreita e provinciana. Gil apresentou em um festival a música Domingo no Parque. Junto com uma banda de rock, Os Mutantes. É mole ou quer mais? Caetano Veloso enfrentou o bando de reacionários com a canção É Proibido Proibir, um manifesto político-musical esfuziante ao som de guitarras elétricas (novamente Os Mutantes). Interrompido pelas vaias da plateia, indignado, ele perguntou: “É esta a juventude que quer tomar o poder?”. Aos gritos, quase sem fôlego, Caetano prosseguiu: “Vocês são iguais aqueles que foram ao Roda Viva e espancaram os atores”. E a condenação definitiva: “Vocês são aqueles que sempre irão matar amanhã o velhote que morreu ontem”.

Gilberto Gil nunca se preocupou em matar ninguém, muito menos inimigos imaginários. Com uma doçura profundamente baiana, ele fundiu antropofagicamente as múltiplas influências que o percorreram durante toda a vida. Em certa ocasião ele explicou porque: “O artista é uma antena da raça”. E que antena poderosa ele foi e continua sendo. Na Baixada ele introduziu a atriz e cantora curitibana Marjorie Estiano, que anda fazendo sucesso na Globo. Eles cantaram juntos No Woman no Cry, de Bob Marley. Na versão de Marjorie-Gil, a canção que evocava os piores anos do regime militar (“amigos presos, amigos sumindo assim”) se transformou em um hino à vida e à alegria. Cantando e dançando, Marjorie Estiano transformou em festa aquilo que era uma evocação de perdas terríveis. Mas nisso ela seguiu o profeta Gil, que anuncia no final da canção: “se Deus quiser, tudo tudo vai dar pé”. Deu. O regime militar acabou. Dançando e cantando, o deus Dioniso exorcizava os males. Marjorie Estiano, sob o olhar amoroso de Gilberto Gil, dançou a dança da despedida. Exuberante, sorridente e agradecida,como todos nós.

O show de Gilberto Gil em Curitiba foi assistido por 25 mil pessoas na Ligga Arena. Alguns dos espetáculos reuniram mais de sessenta mil pessoas. A turnê prossegue, com shows em Belém, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Recife, até o final do ano. Ainda dá tempo de assistir. Ingressos no site. Mas Gil já esclareceu que ele continuará vivo e produzindo. Em entrevista ao New York Times ele disse: “Eu sempre terei meu violão, meu companheiro inseparável”. Ele está se despedindo dos palcos, não da vida.

Hasuo Fukuda
  • Hatsuo Fukuda, advogado e ex-procurador do Estado.

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