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Maria Antonieta: Quase tudo sobre minha mãe

Paulino Motter

Minhas primeiras memórias de infância são fragmentadas. Esfareladas pelo tempo. Embaçadas pelas intempéries. Deslocadas numa territorialidade imaginada. Mas a presença da minha mãe atravessa todos os espaços e todos os traços da minha existência. Sua imagem austera, circunspecta, severa — sempre esteve lá, um amuleto silencioso. Como a capelinha de Nossa Senhora de Fátima que circulava de casa em casa na vizinhança, ela também era um pequeno altar portátil que acompanhava e amparava tudo. A figura imprescindível que fazia funcionar um arranjo familiar impossível.

Esgotada pela ninhada de sete filhos — que cresciam como milho no roçado depois da chuva — provia tudo. Acordava quando os galos ainda anunciavam o alvorecer. Antes do sol nascer, já tinha ordenhado as vacas, acendido o fogo e preparado o café da manhã. Dava conta de tudo. Mas reclamava, com razão, da fleuma do meu pai — um homem pacato, trabalhador, desses que carregam uma espécie de santidade cotidiana. Ela era dura com ele. Não tinha papas na língua. Cobrava. Resmungava em alto e bom som. Sem medo. Sem nenhuma submissão.

Administrava a escassez com um rigor que faria falta à gestão fazendária das administrações públicas. Nunca deixou faltar nada. Era prática, expedita. Sabia fazer mais do que o mínimo. Desdobrava-se entre múltiplas tarefas: manejava a máquina de costura com precisão, dominava o fogão à lenha como uma artesã. Sua polenta virou lenda. Seus queijos artesanais sustentavam nove bocas e, o que sobrava, vendia no comércio ainda incipiente do distrito — qualquer tostão era bem-vindo.

À medida que eu crescia, lembro de minha mãe ficando mais e mais insatisfeita com as privações daquele pedaço de terra, que mal assegurava a subsistência da família numerosa. Mas nunca esmoreceu. Foi ela quem empurrou meu pai a abandonar o sítio para buscar outra vida. Quando os filhos já haviam crescido e partido para estudar e tentar a sorte em outros cantos do país, meus pais tomaram a primeira grande decisão: mudaram-se para uma chácara em Agudos do Sul, em 1989, a cerca de setenta quilômetros de Curitiba. Não se adaptaram. Dois anos depois, em 1991, retornaram a Cafelândia — mas, desta vez, para morar na sede do município, numa casa de alvenaria. Permaneceram lá até que a única filha que ainda vivia em Cafelândia se mudou para Joinville (SC). Então, em 2003, decidiram ir morar em Curitiba, para ficar perto das outras duas filhas, enquanto os filhos homens já tinham se espalhado pelo mundo.

Minha mãe é uma sobrevivente. Com sua saúde precária, chegar aos 89 anos é uma proeza. Um milagre cotidiano forjado mais por teimosia do que por sorte.

Com o tempo, aquela dureza que moldou minha infância começou a rachar. Minha mãe foi se tornando mais compassiva, mais emotiva. Hoje consigo ver que a aparente incapacidade de expressar afeto revelava muito mais sobre a história dela do que sobre qualquer traço de personalidade. Ela não conheceu o próprio pai — morto antes de seu nascimento, esmagado por uma viga durante a construção de uma varanda nos cafundós de Aratiba (RS). Cresceu sob o domínio de um padrasto autoritário, violento e machista. Como poderia ter aprendido a ternura, se ninguém nunca a abraçou?

Recordo que, quando eu era pequeno, minha mãe raramente abraçava ou acariciava os filhos. Hoje entendo: ela repetia o mundo que recebeu. E, ainda assim, o desafiou. Porque, com o passar dos anos, algo foi se abrindo nela. Um gesto aqui, outro ali. Uma emoção antes contida que agora transborda sem bloqueio.

Lembro bem de quantas vezes, no meio da noite, eu a chamava aos gritos, dizendo que não sabia onde estava. Ela se levantava, acendia a lamparina e ia me encontrar dormindo com a cabeça invertida na cama. Aquele pequeno ritual de resgate, repetido tantas vezes, foi talvez a forma mais primitiva — e mais pura — de cuidado que recebi na vida.

É nesse ponto que me obrigo a admitir algo sobre mim. Eu sempre fui o filho mais ausente, o mais distante — por escolha, como quando decidi ir para o seminário aos 12 anos, com a desculpa de ter recebido um chamado, mas movido por outro propósito: fugir do trabalho duro no campo. Também carrego em mim, com nitidez desconfortável, um traço dela: essa dificuldade de externar sentimentos, de permitir que o afeto apareça sem tropeços. Fui me afastando sem hostilidade, mas com uma espécie de blindagem emocional que levei anos para entender. Hoje sei que parte disso veio dela e que nisso também nos parecíamos muito mais do que eu imaginava.

Mas a vida também deixou suas provas invertidas. Lembro quando, aos dez anos, fraturei o braço e tive de ficar internado no Hospital de Policlínicas, em Cascavel. Ela foi me visitar e, quando já estava indo embora, eu saí correndo atrás, pés descalços, e a alcancei na rua. Comovida, me levou de volta para casa, ignorando qualquer procedimento de alta hospitalar. No dia seguinte, uma ambulância apareceu no sítio para me buscar — e eu fui me esconder no paiol. Perderam a viagem. Era o nosso pacto silencioso: nenhum de nós dois sabia demonstrar afeto direito, mas ambos sabíamos reconhecê-lo quando doía.

E, no entanto, alguns momentos superaram essa distância. Um deles guardo como um relicário íntimo: a viagem à Itália, em 2010, que proporcionamos aos nossos pais — uma peregrinação à terra dos antepassados. Em Assis, numa noite fria, num hotel simples, mas confortável, depois de um bom vinho que afrouxou velhos pudores, meu pai foi contando pedaços da história deles que eu desconhecia. A corte, o namoro, as reviravoltas. Contou que rompeu um noivado, que o vestido de casamento — aquele que ele mesmo havia presenteado e que a ex-noiva devolveu — acabou queimado por ele, num gesto definitivo; e que mudou o rumo inteiro da vida quando se apaixonou por minha mãe. Era como assistir, tardiamente, a um filme secreto sobre o início de uma vida que, de algum modo, desembocou na minha. Nunca esqueci aquele quarto, aquela fala mansa do meu pai, aquela espécie de revelação tardia sobre o amor deles — tão mais tumultuado e intenso do que eu jamais supus.

A verdade é que eu e minha mãe fomos nos tornando outros — ela, mais entregue aos afetos; eu, mais capaz de vê-la para além do papel que lhe coube. Às vezes penso que envelhecemos juntos, lado a lado, num aprendizado mútuo que só agora consigo nomear: amor. Um amor que sempre existiu, mas que só depois de tantos anos se permitiu aparecer inteiro. Este é o primeiro aniversário que celebro dela depois de ter chegado aos sessenta — e isso tem um significado transcendental.

No último sábado (6), minha mãe celebrou 89 anos, em Curitiba, na casa da minha irmã caçula, que assumiu seus cuidados desde que meu pai morreu, em 2021. Desde Brasília, onde vivo, pus-me a pensar em tudo isso. Na vida improvável e sacrificada que ela segurou com as próprias mãos. No mundo que ela inventou para que eu pudesse existir. E sinto, sem culpa e sem filtro, que tudo em mim ainda nasce dela — mesmo quando não percebo e finjo indiferença.

Se há algo que eu gostaria de lhe dizer pessoalmente hoje, é simples e sem poesia:

“mãe, eu só cheguei até aqui porque você nunca desistiu.”

E continuo, todos os dias, tentando ser digno do seu esforço — e do seu amor, mesmo quando ele vinha embrulhado em silêncio.

*Jornalista e servidor público federal.

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