HomeDESTAQUEDerrota eleitoral abala governo de Milei e reconfigura o tabuleiro político regional

Derrota eleitoral abala governo de Milei e reconfigura o tabuleiro político regional

Por Paulino Motter

O plano econômico ultraliberal de Javier Milei começou a fazer água: a inflação corrói salários, o ajuste draconiano das contas públicas não trouxe estabilidade, os escândalos de corrupção envolvendo seus aliados ampliaram o desgaste político e, para agravar, o governo foi forçado a dar um cavalo de pau com a volta do controle cambial para tentar conter o derretimento do peso. A insatisfação popular, antes difusa, ganhou corpo nas ruas e nas urnas no último domingo. A fragorosa derrota eleitoral em Buenos Aires marca o ponto de virada mais dramático do seu governo, colocando em xeque a viabilidade do projeto libertário e expondo as fragilidades de um presidente que se pretendia imbatível.

O veredicto popular na província de Buenos Aires foi contundente: Fuerza Patria, liderada pelo governador peronista Axel Kicillof, obteve 47,3% dos votos (3.820.119 sufrágios), mais de um milhão acima da Libertad Avanza, agrupamento político do presidente Javier Milei, que ficou relegada a 33,7% (2.723.710 votos). Bem atrás, a terceira força, Somos Buenos Aires, alcançou apenas 5,3%.

O que acaba de acontecer é muito mais que um resultado eleitoral. Foi um tsunami político contra o experimento ultraneoliberal e autoritário de Javier Milei, que pretendia validar nas urnas bonaerenses seu projeto de demolição do Estado, sua agenda de ajuste draconiano e sua pregação autodenominada libertária contra a democracia representativa. O povo argentino respondeu com clareza rotunda: não está disposto a entregar sua dignidade aos mercados nem a se submeter ao capricho de um presidente que governa como showman e não como estadista.

A magnitude da vitória da Fuerza Patria confirma que a unidade do peronismo pode deter o avanço do desmonte do Estado argentino. Kicillof, com um discurso em defesa do público, da soberania nacional e dos direitos conquistados, conseguiu articular o descontentamento de milhões frente à inflação, à queda do poder de compra e ao desprezo sistemático de Milei pela educação, pela saúde e pela cultura.

Nesse processo, Axel Kicillof emerge como o grande vitorioso e o líder de um peronismo que renasce das cinzas. Seu triunfo na província mais populosa e estratégica do país o posiciona no tabuleiro político como provável candidato à Presidência, capaz de conduzir a reconstrução nacional diante do vazio de poder que deixa um Milei fragilizado, a três meses de completar dois anos no cargo.

A derrota sísmica de Milei na Argentina coincidiu com a abertura de uma semana decisiva na região: outro líder da ultradireita continental, Jair Bolsonaro, enfrenta no Brasil um julgamento que provavelmente o levará à condenação por tramar um golpe de Estado. Assim, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assiste à deriva de seus grandes adversários ideológicos e aliados de Donald Trump. O revés eleitoral de Milei e a provável condenação de Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) revelam que os experimentos reacionários que buscavam hegemonia nas duas maiores economias da América do Sul começam a se esfarelar.

O impacto do resultado nas urnas neste domingo transcende as fronteiras argentinas. No Mercosul, onde Milei tentava dinamitar consensos históricos, a vitória de Kicillof fortalece a continuidade da integração regional e aproxima Buenos Aires das posições de Brasil, Uruguai e Paraguai na defesa de uma estratégia comum diante dos desafios globais. Para o Brasil, em particular, significa contar com um sócio renovado na principal província argentina, que aposta na cooperação e não no unilateralismo e isolamento trumpista que Milei pretendia impor.

No entanto, o quadro sul-americano segue marcado por contrastes e complexidades. Chile e Uruguai, ambos sob governos de esquerda, se destacam como os países mais estáveis da região, onde a alternância política convive com instituições sólidas. Já a Bolívia registrou, no último dia 17 de agosto, uma derrota acachapante da esquerda e realizará segundo turno em 19 de outubro, com dois candidatos de direita em disputa. No Equador, o direitista Daniel Noboa foi reeleito, consolidando sua liderança e reforçando um caminho liberal que contrasta com a guinada argentina.

Apesar dessas variações de direção ideológica, é inegável que, na Argentina e no Brasil, travam-se os embates mais consequentes para toda a região. O destino de suas democracias, postas à prova por projetos de ultradireita, terá impacto decisivo sobre o futuro da integração, da soberania e da justiça social em toda a América do Sul.

Além disso, o resultado das eleições na província de Buenos Aires redesenha o cenário político para as eleições legislativas do próximo mês, quando será renovada metade do Congresso argentino. A queda de Milei em seu principal teste nas urnas desde que chegou à Casa Rosada, em 2023, antecipa um rearranjo de forças: o oficialismo libertário chega enfraquecido, enquanto a Fuerza Patria e seus aliados terão um impulso decisivo para ampliar sua representação parlamentar. A composição do novo Congresso será determinante para definir se o programa de reformas mileísta se consolida ou se, ao contrário, fica definitivamente bloqueado.

Milei, por sua vez, ficou exposto em sua verdadeira condição: um bufão político. Seu desprezo por aposentados e trabalhadores cobrou o preço. A categórica derrota imposta pelos eleitores da província de Buenos Aires o deixou contra as cordas, mostrando que a paciência social tem limites e que a arrogância presidencial pode ser castigada sem piedade quando se converte em indiferença diante do sofrimento popular.

7 de setembro de 2025 ficará gravado como um dia luminoso para a democracia argentina. Milei, que apostou em transformar o pleito em um plebiscito da sua gestão, recebeu uma sonora reprovação da maioria do eleitorado. E o povo argentino, mais uma vez, demonstrou que nenhum poder, por mais estridente que seja, pode se impor à vontade coletiva de defender a justiça social e a soberania popular.

Viva a democracia argentina! Vida longa ao Mercosul!

  • Paulino Motter é jornalista e gestor público

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