Gaudêncio Penaforte
Entre a última sexta-feira e a madrugada desta quarta-feira, assistimos atônitos a uma sucessão de acontecimentos que redesenham, sem disfarces nem pudores, o tabuleiro eleitoral de 2026.
Na sexta-feira (5), o senador Flávio Bolsonaro se autoproclamou — como um herdeiro ungido pelo pai todo-poderoso, condenado a 27 anos e três meses de prisão por cinco crimes e hoje cumprindo pena no “spa” da Polícia Federal, em Brasília — pré-candidato à Presidência da República.
No sábado, sem qualquer cerimônia, anunciou que a candidatura fake tinha “preço”: a anistia do pai. A moeda de troca foi explicitada com a naturalidade de quem confunde a República com o quintal da própria mansão de R$ 6 milhões no Lago Sul, quitada em 2024, por suprema ironia, com 27 anos de antecipação. Gesto premonitório do filho primogênito, que herdou do pai o talento para investir em imóveis!
Nesta segunda-feira (8), Flávio reuniu o colega senador Ciro Nogueira, presidente do Progressistas, Antonio Rueda, presidente do União Brasil, e outros líderes do PL para negociar o tal “preço”. Nada mais explícito: o clã apresentava sua fatura, e o Centrão, sempre pragmático, calculava o custo-benefício.
Na terça-feira (9) — ontem, portanto — o presidente da Câmara, Hugo Motta, após conversar com as lideranças do Centrão, anunciou que levaria ao plenário o PL da Dosimetria (PL 2162/2023). Ali começava a operação de pagamento: uma articulação a toque de caixa para atender ao pacto selado na véspera na mansão de Flávio Bolsonaro, limpando o caminho para o verdadeiro candidato das elites econômicas — o governador Tarcísio de Freitas.
E, nesta madrugada (10), veio a quitação da primeira prestação: o PL da Dosimetria foi aprovado com 291 votos a favor e 148 contrários. Um presentão de Natal para os golpistas de 8 de janeiro.
O paralelo escandaloso: endurecimento para uns, indulgência para outros
Convém recuperar outro fato que torna a votação desta madrugada ainda mais indecorosa. Na mesma sessão maratonada, a Câmara aprovou, em segunda votação, o projeto de lei voltado a combater os chamados devedores contumazes, endurecendo significativamente o tratamento penal e administrativo desses agentes econômicos que se estruturam para fraudar sistematicamente o fisco. No discurso oficial, tratava-se de dar um basta à “delinquência empresarial organizada”, reforçando o poder sancionador do Estado contra quem opera à margem da lei para obter vantagens competitivas ilícitas.
É justamente esse contraste que desnuda a contradição gritante da base governante no Legislativo: no mesmo dia em que impõe rigor extremo contra organizações criminosas de perfil econômico, essa mesma base afrouxa as penas para uma organização criminosa de natureza política, responsável por atentar contra o Estado Democrático de Direito.
E vale lembrar que, no último dia 18 de novembro, a Câmara já havia aprovado o substitutivo Derrite ao PL 5582/2025, de autoria do Executivo, propondo o endurecimento das penas para o crime organizado, que podem chegar a 40 anos, sem progressão. Era o discurso do rigor penal, da ordem, da mão firme do Estado.
Pois a mesma base parlamentar, sem mudar uma vírgula da própria hipocrisia, aprovou nesta madrugada um projeto “customizado”, reduzindo drasticamente as penas para os integrantes da organização criminosa chefiada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. A pena de 27 anos e três meses seria reduzia a pó. O período máximo de reclusão que teria de cumprir seria de cerca de dois anos e quatro meses. Uma verdadeira anistia disfarçada e envergonhada!
Conclusão inevitável: As penas são duras para certas organizações criminosas — e extremamente lenientes para outras. Depende de quem lidera, quem negocia e quem paga o preço.
O Senado como última trincheira republicana
Agora a bola está com o Senado. E será preciso que se repita a mobilização popular que barrou a PEC da Blindagem para que os senadores atuem, mais uma vez, como guardiões da República, impedindo que prospere a verdadeira excrescência legislativa engendrada na mansão de Flávio Bolsonaro e consumada nesta madrugada.
O que não deve deixar sombra de dúvida é que o Centrão é hoje o dono absoluto do jogo no Legislativo. Já controla mais de dois terços da Câmara dos Deputados e poderá conquistar, em 2026, uma folgada maioria qualificada também no Senado. E, quitado o preço estipulado pelo bolsonarismo, o bloco já tem candidato para enfrentar Lula: Tarcísio de Freitas, o preferido das elites econômicas e dos caciques regionais.
Os demais postulantes da direita podem, desde já, tirar o cavalinho da chuva: Ronaldo Caiado, Romeu Zema e Ratinho Júnior viraram figurantes. No espírito natalino, fazem o papel de vaquinhas de presépio. Presepada por presepada, porém, o Oscar vai para Flávio Bolsonaro e sua candidatura faz-de-conta. Eis o jogo para 2026, sem cortinas nem metáforas.
E o que se desenha — com uma nitidez que chega a tirar o sono — é o pior cenário possível: com Tarcísio de Freitas como candidato a Presidente, a direita marchará unida, com perspectivas reais de conquistar ampla maioria nas duas Casas do Congresso.
A esquerda, por sua vez, se aferra à esperança de reeleger Lula para manter o comando do Executivo — um Executivo que já não governa sequer o próprio orçamento, hoje apropriado pelo Centrão. E, ironicamente, nem mesmo os parlamentares petistas abrem mão de seu quinhão no botim das emendas. A engrenagem do patrimonialismo legislativo é transversal e avassaladora.
No Brasil de hoje, o vórtice real do poder não está nem no Planalto, nem nos palanques, nem nas redes sociais. Está nesse amálgama de interesses oligárquicos regionais chamado Centrão — a força política mais organizada, mais previsível em seus métodos e mais implacável em suas ambições.
E, se essa anomalia jurídica prosperar no Senado — o que espero sinceramente que não aconteça — que Lula tenha, então, culhões para vetá-la integralmente. E devolver a responsabilidade de ratificar a paternidade deste mostrengo aos líderes do Centrão, encabrestados e servis ao projeto de retorno ao poder do bolsonarismo.
É o Centrão, estúpidos! E é ele quem dita o ritmo, o preço e o desfecho do jogo político que nos conduzirá até 2026.


