Jorge M. Samek*
Nesta sexta-feira, 28 de novembro, celebramos o 80.º aniversário do advogado João Bonifácio Cabral Júnior. Quem teve o privilégio de caminhar ao seu lado sabe que ele representa algo raro na vida pública brasileira: o encontro virtuoso entre um saber jurídico de excelência e um caráter forjado na defesa intransigente da democracia. Cabral é desses homens cuja biografia se confunde com a história recente do país.
Quando ingressei no curso de Agronomia da UFPR, em 1975, seu nome já circulava com respeito nos corredores estudantis. Ele fez parte da geração de 1968 que, no período mais repressivo da ditadura, saiu às ruas em defesa da democracia e da universidade pública. Cabral acabou preso no célebre Congresso da UNE em Ibiúna (SP), em outubro de 1968, e novamente detido dois meses depois, num encontro regional em Curitiba. O regime o condenou a quatro anos de prisão; cumpriu pena no presídio do Ahú e só foi libertado em junho de 1970.
Mesmo enfrentando as privações da prisão, manteve disciplina de estudos: fazia provas algemado e escoltado por soldados. Aquela dureza — que a muitos quebraria — apenas temperou seu caráter. Havia nele um foco sereno, uma luz interior que nem a repressão conseguiu apagar.
Esses valores o acompanhariam na advocacia. Cabral jamais entendeu o Direito como técnica neutra; via-o como serviço público. Coragem, dignidade, empatia e um compromisso com o ser humano foram os alicerces de sua trajetória. Parafraseando o título do embaixador Gibson Barbosa, arquiteto do Tratado de Itaipu, Cabral encontrou na advocacia “o traço todo de uma vida”: ali nasceu seu modo singular de intervir no mundo.
Conheci-o pessoalmente no início dos anos 1980, na campanha de José Richa ao governo do Paraná. Cabral integrava uma equipe de advogados especializados em legislação eleitoral — grupo decisivo na disputa contra o candidato apoiado pelo regime militar. Vencemos no TRE e nas urnas. A sobriedade jurídica de Cabral, sua capacidade de diálogo e sua firmeza deixaram profunda impressão em todos nós.
No governo Richa, presidiu o Instituto de Terras, Cartografia e Florestas (ITCF), onde se destacou na regularização fundiária e na solução de conflitos históricos. Formou ali uma equipe de excelência, na qual despontou o jovem advogado Edson Fachin — hoje presidente do Supremo Tribunal Federal — cuja formação intelectual e ética teve em Cabral um dos mentores.
A vida pública levou-o ainda à Secretaria de Coordenação de Governo na prefeitura de Curitiba e, mais tarde, à Procuradoria-Geral do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Em todas as funções, deixou a marca que o define: firmeza ética, urbanidade no trato, rigor técnico e disposição permanente para ouvir.
Poucos conhecem outro pilar definidor da sua identidade: uma espiritualidade profunda, vivida com discrição. Vindo de família católica, cultivou uma fé que não se impõe, mas inspira — sem, contudo, comprometer sua defesa intransigente da laicidade do Estado.
Ao lado de dona Sônia, sua companheira de todas as horas, construiu uma família sólida. Dos quatro filhos, três abraçaram o Direito: Juliana, dedicada à pesquisa acadêmica e aos direitos humanos; Rodrigo, promotor de Justiça; e Rafael, advogado de prestígio. A caçula, Beatriz, encontrou na Biologia a sua vocação e realização, devotada à causa do meio ambiental. O compromisso de todos com o bem comum diz muito sobre a força do exemplo recebido dentro de casa.
Na segunda metade da década de 1990, Euclides Scalco convidou-o a participar da estruturação da licitação internacional das unidades geradoras 9A e 18A da Itaipu. A proposta inicial, superior a 800 milhões de dólares, foi reduzida à metade graças a um processo que uniu rigor jurídico, solidez técnica e maturidade administrativa — qualidades que Cabral aportou com naturalidade.
Quando, em 2003, o presidente Lula me convidou para assumir a Diretoria-Geral Brasileira da Itaipu Binacional, convenci-me de que era imprescindível mantê-lo à frente da Diretoria Jurídica. Dos 14 anos da minha gestão, tive o privilégio de contar, nos primeiros nove, com sua serenidade, firmeza e competência em uma área sensível e decisiva. Sua presença foi fundamental para dar sustentação jurídica a um período de grandes transformações, investimentos estruturantes e ampliação do papel social da empresa.
Sob sua liderança, a Diretoria Jurídica formou uma geração inteira de advogados e advogadas. Muitos ainda o reverenciam como mentor, mestre e referência ética. Esse legado, visível talvez apenas no ofício bem feito e na conduta diária, é, sem dúvida, um dos frutos mais duradouros de sua passagem pela binacional.
E há também o Cabral das pequenas anedotas — aquele que revela, sem esforço, a profunda humanidade que sempre o guiou — como essa que ele gostava de contar: um dos filhos — talvez Rodrigo, talvez Rafael — tinha mania de roer unhas; nem ele nem dona Sônia conseguiam fazê-lo parar. Num desses encontros, pedi licença e contei ao garoto que, por não ouvir meus pais, acabara perdendo parte dos dedos; mostrei a mão marcada pelo acidente que sofri na infância, quando foi puxada pela correia de um gerador em Foz do Iguaçu. Cabral dizia que foi “santo remédio”: o menino nunca mais roeu as unhas. Histórias simples que revelam o afeto doméstico e a confiança que ele depositava em quem com ele convivia.
A trajetória de João Bonifácio Cabral Júnior demonstra que integridade não é um lema: é prática cotidiana. Enfrentou a ditadura, assumindo todos os riscos, reconstruiu a própria vida com serenidade, serviu ao Paraná e ao Brasil com devoção republicana e exerceu a advocacia com humanidade e empatia — qualidades cada vez mais escassas num tempo de polarizações fáceis.
Aos 80 anos, Cabral permanece exatamente o que sempre foi genuinamente: homem íntegro, de convicções profundas, generosidade silenciosa, espírito público e lealdade inquebrantável. Celebrar sua vida é celebrar a melhor tradição democrática do nosso estado e do nosso país.
Para mim, é honra — e alegria — chamá-lo de amigo.
* Jorge M. Samek, é Engenheiro agrônomo pela UFPR, foi vereador de Curitiba por quatro mandatos e diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional, de 2003 a 2017.


