
Sebastião Salgado: imagens que iluminam consciências e preservam memórias
Salgado construiu uma obra monumental que atravessa fronteiras, tempos e geografias, mas permanece visceralmente ligada ao Brasil e às questões universais da dignidade humana, da luta e da resistência.
Por Paulino Motter
Morreu hoje, aos 81 anos, em Paris, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, um dos maiores nomes da história da fotografia documental e humanista mundial. Radicado na capital francesa há quase meio século, Salgado construiu uma obra monumental que atravessa fronteiras, tempos e geografias, mas permanece visceralmente ligada ao Brasil e às questões universais da dignidade humana, da luta e da resistência.
Figura consagrada ao lado de nomes como Henri Cartier-Bresson e Steve McCurry, Salgado é autor de séries icônicas que marcaram a história da fotografia no século XX, como “Trabalhadores”, “Êxodos”, “Gênesis” e os mais recentes projetos voltados aos povos originários brasileiros. Sua lente, rigorosamente em preto e branco, captou a essência da luta e da sobrevivência humana em cenários de exploração, migração e resistência, da Serra Pelada aos confins da África, das florestas intactas aos desertos ancestrais.
Sebastião Salgado tornou-se mundialmente conhecido ao registrar, em 1981, a icônica fotografia do atentado sofrido pelo então presidente norte-americano Ronald Reagan, em Washington. A imagem, captada em meio ao caos, consagrou seu nome na imprensa internacional e abriu caminho para a carreira que viria a se consolidar como uma das mais importantes na história da fotografia e do fotojornalismo.
Entre as muitas homenagens e celebrações de sua carreira, guardo com especial carinho a memória da exposição “Trabalhadores”, realizada em 2014, no Ecomuseu de Itaipu, em Foz do Iguaçu, ocasião em que tive a honra de conduzir, como assistente do então diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional, Jorge Samek, as articulações para viabilizar o projeto e sua realização. Foi um dos trabalhos mais reconhecidos na área da cultura promovido pela gestão de Samek à frente de Itaipu (2003-2017).

Foi no contexto das comemorações pelos 40 anos da Itaipu Binacional e do centenário de Foz do Iguaçu que a cidade recebeu, pela primeira vez, uma mostra de Sebastião Salgado. O projeto expositivo, como tantas outras mostras brasileiras do fotógrafo, teve a assinatura primorosa do arquiteto Álvaro Razuk, parceiro de longa data de Salgado e de sua esposa e produtora, Lélia Wanick Salgado, responsável pela curadoria. Ambos estiveram presentes na abertura da exposição, no dia 6 de junho de 2014 — um presente para a cidade e para o público de Foz do Iguaçu e região, além de turistas que tiveram a oportunidade de visitá-la.
A exposição “Trabalhadores” trouxe para o oeste paranaense imagens que narram, com intensidade e lirismo, as faces e os gestos do trabalho humano pelo mundo — mineiros, pescadores, agricultores, operários — em registros que dialogam com a história social e econômica de tantos brasileiros. A mostra foi, à época, uma das mais visitadas da história do Ecomuseu, tornando-se referência na agenda cultural de Foz do Iguaçu e da região trinacional.
Salgado viveu, em sua epopeia de mais de meio século como fotógrafo, a dramática transição entre a fotografia tradicional e o universo digital. Trabalhando por décadas com câmeras analógicas de médio formato e filmes P&B, viu-se, como tantos outros mestres, diante do desafio de preservar a densidade estética e material de suas imagens ao migrar para os processos digitais, mantendo o caráter artesanal de sua produção, que segue até hoje sob o cuidado da Amazonas Images, sua agência e arquivo pessoal.
Seu acervo monumental é constituído por cerca de 500 mil fotos impressas e mais de um milhão de imagens — um verdadeiro patrimônio visual da humanidade, atravessando territórios, crises e histórias. A curadora paranaense Cristiane Rodrigues, ex-diretora do Teatro Guaíra, radicada em Paris há cerca de duas décadas, vem trabalhando há mais de três anos, sob a supervisão de Lélia Salgado, na organização e catalogação desse preciosíssimo acervo. Cris foi minha colega de faculdade no curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e permanece minha amiga há mais de quatro décadas.
Mais recentemente, Sebastião Salgado também se notabilizou por seu engajamento ambiental. Ao lado de Lélia, transformou a antiga propriedade de herança familiar no interior de Minas Gerais, no município de Aimorés, em uma reserva de conservação ambiental exemplar: o Instituto Terra, dedicado ao reflorestamento e à recuperação de áreas degradadas da Mata Atlântica. É irônico — e triste — que sua morte tenha ocorrido na mesma semana em que o Senado brasileiro aprovou um projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, um retrocesso que afronta não apenas o legado de Salgado, mas o futuro das próximas gerações.
Em maio de 2014, tive a oportunidade de visitar a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Fazenda Bulcão, fundada pelo casal em 1998, que recuperou uma área de 608,69 hectares de Mata Atlântica. Fui na companhia do então diretor de Coordenação da Itaipu Binacional, NeltonFriedrich, e fomos recebidos pelo casal Salgado para um encontro memorável, na antiga sede da fazenda.
Sebastião Salgado sempre entendeu a fotografia não apenas como arte, mas como testemunho e denúncia. Alguns dos seus trabalhos de maior impacto cobriram tragédias humanitárias pelo mundo, como a fome na África, o formigueiro humano do garimpo de Serra Pelada, no Pará, a destruição do pós-guerra no Kuwait — algumas fotos, inclusive, fizeram parte da exposição “Trabalhadores” —, o genocídio em Ruanda, movimentos migratórios em diferentes partes do mundo e crises de refugiados. Seus livros, publicados pela prestigiada Taschen, circularam o mundo e, mais do que belas imagens, carregaram reflexões profundas sobre as desigualdades, os deslocamentos humanos e a crise ambiental planetária.
Ao revisitarmos hoje seu legado, permanecem atuais as palavras do texto de Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, escrito para a exposição “Gênesis”, e que bem resume a essência da obra de Salgado: “A potência das fotografias de Sebastião Salgado reside na intersecção entre política, geografia e estética”. Era, antes de tudo, um olhar que dava sentido ao que o mundo teima em não ver.
O Brasil perde hoje um de seus maiores artistas. Foz do Iguaçu, e todos nós que tivemos o privilégio de acompanhar de perto esse capítulo de sua trajetória, agradecemos. Que suas imagens sigam iluminando consciências e atravessando o tempo. E que a generosidade de Sebastião e Lélia, expressa tanto em suas imagens quanto na dedicação à terra e às pessoas, permaneça como exemplo e memória para as próximas gerações.
Paulino Motter
Jornalista, servidor público federal, ex-assessor de cultura da Itaipu Binacional e articulador da exposição Trabalhadores em Foz do Iguaçu.