A guerra fiscal sempre foi um dos traços mais visíveis — e problemáticos — do modelo tributário brasileiro.
Juarez Arnaldo Fernandes
Durante anos, estados e municípios disputaram investimentos com ofertas de benefícios fiscais, muitas vezes à margem da legalidade, prática essa que embora eficiente em atrair empresas no curto prazo, contribuiu para uma profunda distorção concorrencial entre regiões e para um contencioso interminável no Judiciário, e com a reforma tributária já em curso, uma promessa ganha força: encerrar de vez esse capítulo da história. Mas será que estamos realmente diante do fim dos incentivos ou apenas iniciando uma nova fase mais sofisticada, porém igualmente desigual?
Com a criação do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), a reforma promove a unificação de tributos e proíbe a concessão unilateral de benefícios por estados e municípios. O novo sistema se baseia na não cumulatividade plena, na cobrança no destino e em uma gestão centralizada da arrecadação, e na teoria, esse redesenho desmonta as armas tradicionais da guerra fiscal — na prática, o jogo está longe de terminar.
O centro da disputa agora passa a ser o Comitê Gestor do IBS, que administrará a arrecadação e a partilha do novo tributo entre os entes federativos. A composição desse Comitê inclui apenas representantes de estados, municípios e do Distrito Federal — sem espaço para a União e tampouco para o setor produtivo, e aqui o risco é evidente: decisões fundamentais para o funcionamento do sistema serão tomadas por quem arrecada, sem participação direta de quem paga. 1
Esse desequilíbrio pode gerar consequências sérias, já que o Comitê terá poder normativo relevante, inclusive para definir regras operacionais, interpretar dispositivos da legislação complementar e resolver conflitos federativos. Estados politicamente mais 1Art. 481 da LC 21/2025: O Conselho Superior do CGIBS, instância máxima de deliberação do CGIBS, tem a seguinte composição: I – 27 (vinte e sete) membros e respectivos suplentes, representantes de cada Estado e do Distrito Federal; e, II – 27 (vinte e sete) membros e respectivos suplentes, representantes do conjunto dos Municípios e do Distrito Federal. influentes poderão dominar o processo decisório, enquanto os menores correm o risco de serem marginalizados, portanto, a guerra fiscal pode deixar de ser travada por meio de incentivos para acontecer nos bastidores da administração tributária — mais institucionalizada, menos visível, mas ainda presente.
Outro ponto crítico é o impacto regional da extinção dos incentivos. Muitos estados, especialmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, utilizaram benefícios fiscais como mecanismo compensatório diante de desvantagens estruturais, e com a perda dessa ferramenta, essas regiões podem se tornar ainda menos competitivas, caso não haja uma política nacional sólida de equilíbrio federativo, pois retirar os incentivos sem oferecer alternativas pode aprofundar desigualdades.
Além disso, imaginar que os entes deixarão de competir entre si é, no mínimo, ingênuo, e a guerra fiscal pode migrar para outros terrenos: concessões extratributárias, programas de crédito subsidiado, incentivos regulatórios e políticas indiretas de estímulo. Os mecanismos mudam, mas a lógica da disputa permanece — agora em moldes mais silenciosos.
Do ponto de vista das empresas, a transição exige atenção redobrada. Negócios que cresceram apoiados em regimes especiais precisarão reavaliar sua estrutura, seus contratos e seus custos, e considerando a extinção dos incentivos haverá impacto direto sobre decisões estratégicas, localização de plantas, logística e viabilidade econômica de operações. Por outro lado, a simplificação do sistema e a promessa de maior uniformidade podem beneficiar empresas que operam em múltiplos estados, reduzindo litígios e aumentando a previsibilidade — desde que o novo modelo funcione como prometido.
Este momento é especialmente sensível, em que a reforma exige das empresas não apenas adaptação, mas planejamento profundo. Revisar obrigações, estudar os efeitos fiscais da transição, acompanhar as normas do Comitê Gestor e se preparar para um cenário ainda indefinido são passos indispensáveis.
Em última análise, a guerra fiscal pode estar se encerrando — não por pacificação, mas por esgotamento político e jurídico de um modelo que já não se sustentava, e a nova fase que se inicia carrega expectativas legítimas de racionalidade e equilíbrio, mas, também levanta dúvidas importantes sobre representatividade, justiça regional e segurança jurídica. Por fim, o desafio não está apenas em mudar o sistema, mas em fazê-lo funcionar de forma justa, não sendo o risco pequeno: não basta trocar as regras do jogo — é preciso garantir que todos ainda tenham condições de jogar.
Juarez Arnaldo Fernandes
Especialista em Direito Constitucional e Tributário, Empresarial e Recuperação de Empresas, Penal e Econômico, Contábil e Financeiro, Perícia, Avaliação e Arbitragem, Contabilidade Tributária, Contabilidade Forense e Investigação de Fraudes. Contador. Perito Contábil Judicial no TJ/PR, TJ/RS e JF/PR. Parecerista.