Publicações em redes sociais afirmam que o governo do Reino Unido está se preparando em segredo para um “evento de mortes em massa”. As mensagens se baseiam em uma licitação do Ministério do Interior para a compra de equipamentos e estruturas mortuárias.
Os posts dizem “Por que o governo está se preparando silenciosamente para um evento de fatalidade em massa?”; “Achei que fosse teoria da conspiração, mas achei o link oficial”; “Isso exige uma explicação detalhada. O governo não compra um necrotério desse tamanho sem motivo.”; “É uma pista do que eles estão planejando para nós.”.
A verdade é que o contrato existe, mas não tem nada de “secreto” nem indica que o governo esteja prevendo um desastre específico. Não é conspiração, mas planejamento. O objetivo é assegurar que, em caso de tragédia de grande escala, a resposta seja rápida e digna, inclusive no trato com os mortos.
Por que, então, a medida foi percebida como prenúncio de tragédia? Porque ainda é tabu discutir a morte e, sobretudo, o papel do Estado diante dela. Em tempos de redes sociais, silêncio institucional não representa neutralidade, mas abdicação da narrativa pública. Onde faltam explicações oficiais, proliferam versões especulativas.
Nesse contexto, a crise não nasce do evento em si, mas de como ele é comunicado. A expressão “preparar-se silenciosamente” carrega carga emocional que, usada como isca de cliques, transforma prevenção em alarme. Quando decisões técnicas não são traduzidas em linguagem acessível, a opinião pública torna-se refém de interpretações oportunistas.
Apesar das distorções, o fundamento técnico é claro: planejar estruturas para múltiplas fatalidades não é morbidez, mas responsabilidade. A gestão de riscos opera pelo princípio da precaução: antecipar cenários desconfortáveis é a melhor forma de proteger vidas. A história recente confirma.
No Brasil, os números falam por si. Segundo o Cemaden, inundações e deslizamentos mataram mais de 2.400 pessoas entre 2014 e 2023. No mesmo período, menos de 30% dos municípios tinham plano de contingência homologado pela Defesa Civil. Apesar das tragédias, pouco se fala em prevenção, simulações de evacuação ou estruturas móveis de emergência. Menos ainda em planos de gestão mortuária — como se evitar o tema afastasse sua inevitabilidade.
Mais do que uma crítica à cobertura alarmista, o episódio britânico é um alerta: governos precisam comunicar com clareza decisões que impactam a vida — e a morte — da população. Omissão informacional abre espaço para ruídos e especulações, que ocupam o vazio da ausência oficial. Como ensina a comunicação de crise, “quem não fala, ouve o que os outros dizem por ele”. Isso é ainda mais grave quando o tema desafia tabus culturais. Falar sobre a morte exige empatia, preparo técnico e coragem política — não apenas para agir, mas para explicar.
À imprensa, cabe o dever ético de contextualizar. Jornalismo responsável não fabrica cliques: oferece entendimento. E ao cidadão, cabe desenvolver educação midiática: não acreditar em tudo que circula na internet, checar fontes confiáveis e reconhecer que compartilhar desinformação também gera responsabilidade.
Evitar o tema da morte não elimina sua urgência. Pelo contrário: fragiliza a democracia. A prevenção de fatalidades não indica colapso iminente — indica maturidade institucional. Comunicar é tornar compreensível o que é difícil de ser dito. O mesmo se aplica à gestão pública. Falar sobre a morte pode ser desconfortável. Mas o silêncio, esse sim, custa muito mais caro.