Um dos maiores clássicos da canção popular brasileira, conhecida por dez entre dez bêbados e habituês da madrugada, é a Boate Azul. Não há reunião de cachaceiros em que, após a ingestão de doses respeitáveis da maldita cachaça (ou uísque, ou tequila, depende do nível social e idade da turma), a canção não seja cantada, às vezes em altos brados. Já vi senhores habitualmente circunspectos e respeitáveis se juntarem ao coro – o que acontece em Las Vegas fica em Las Vegas – todos irmanados na nostalgia de algo que provavelmente nunca experimentaram. Afinal, são honoráveis doutores que jamais frequentariam casas suspeitas na Zona Sul.
A distinção entre alta e baixa cultura fez com que esta e outras clássicas canções populares ficassem relegadas ao limbo das rádios AM – coisa do povo, portanto, desprezível – brega. Mas a verdade dionisíaca fala mais alto. In vino veritas. A festa começa de verdade quando as amarras da boa sociedade se soltam e alguém começa a cantar Boate Azul e descobre-se que todos a conhecem e gostam, homens e mulheres, jovens e velhos. A canção tornou-se standard em megashows sertanejos. Saiu do gueto e tornou-se um hino.
“Doente de amor procurei remédio na vida noturna/Com uma flor da noite em uma boate aqui na zona sul/A dor do amor é com outro amor que a gente cura”
Benedito Seviero (letra) e Aparecido Tomás de Oliveira (melodia) são os autores da canção. Benedito narra o episódio. O cantor José Lopes faria uma apresentação na Blue Night, boate que ficava em uma rodovia três quilômetros distante de Apucarana. Naquele dia, morreu o Papa João XXIII (isso foi em 1963) e o show foi cancelado, o que deixou a freguesia desconsolada, sem saber aonde ir. Três meses depois ele escreveu a canção. Em pleno regime militar, a canção foi proibida, e somente em 1980 foi gravada pelo grupo Os Amantes do Luar. Aberta a porteira, todos os cantores passaram. Mais fácil fazer a lista de quem não a cantou. Bruno e Marrone gravaram e ajudaram a popularizar a canção entre os mais jovens. Mato Grosso e Matias também gravaram. A seguir ganhou o mundo. A canção Boate Azul foi gravada mais de mil vezes em oitenta idiomas diferentes.
O Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira diz que Benedito Seviero teve mais de mil músicas gravadas. Difícil achar um nome no universo da canção sertaneja que não tenha gravado alguma canção dele. Chitãozinho e Xororó, Sérgio Reis, Gian e Giovani, Teodoro e Sampaio, Bruno e Marrone, Matogrosso e Mathias, Reginaldo Rossi, Pedro Bento e Zé da Estrada, Tião Carreiro e Pardinho, Trio Parada Dura, Lourenço e Lourival, Milionário e Zé Rico, Michel Teló, todos gravaram. Cauby Peixoto, que não era do universo sertanejo, gravou. A dupla Zilo e Zalo, parceiros de uma vida toda de Benedito Seviero, gravou mais de 80 canções. Ele é um dos maiores compositores do Brasil, e um dos mais prolíficos. No YouTube você encontra o vídeo de um velório, em que a canção é cantada em homenagem ao falecido. Quantos compositores podem se orgulhar disso?
Eu me pergunto como uma canção machista, dos anos 60, ainda faz sucesso no Brasil, inclusive com as mulheres. Há algo nela que ressoa nos corações. Talvez a solidão que retrata, o desconsolo alcoólico, a total desorientação emocional seja a resposta. Não é preciso frequentar baiucas de beira de estrada para se emocionar com isso.
Aconteceu com a Boate Azul o que aconteceu com a canção sertaneja. Saíram, ambos, do limbo em que foram jogados pelos bons costumes e a hipocrisia.

- Hatsuo Fukuda, advogado e ex-procurador do Estado.
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